domingo, 6 de novembro de 2011

ONDE NÃO ESTÁ FALTANDO ELE?

Por Fernando Mousinho

De religiosidade pouco ortodoxa Tota de Zerôncio perdia o Santo para elevar um amigo. Por exemplo: O Padroeiro de Muriú não se chama São Benedito, mas sim, São Benevito, parente de Joaquim Vitor, pai do Neguinho Décio. Sacrilegiava ele, vez por outra.

Com fé ou pouca fé, a verdade é que a dupla Night and Day – também criação do humorismo fantástico de Tota - está refeita, num bom lugar e iluminado por uma paz fraternal de amizade construída entre amigos.

As décadas de 70/80 foram tempos inesquecíveis dos carnavais de Salvador, onde tudo era possível acontecer. O QG era a casa de Wellington do Couto, onde, por sinal, num só dia e de uma só vez Edilmeia comeu, sozinha, todo suculento bode preparado carinhosamente por Décio Hollanda e que seria o alimento de um batalhão de foliões ali albergados durante o período de Momo.

Estávamos na avenida eu, Décio, Baíto e Wellington quando entabulamos uma paquera coletiva com quatro carnavalescas, todas elas professoras. Tudo concorria para uma conclusão de consenso, quando Décio caiu numa armadilha criada por ele próprio. Logo ele, com seu jeito ladino e andar de bolero, e que vinha conduzindo tão bem a articulação.

Vamos ao fato. Uma das professoras perguntou-lhe a idade, e ele de pronto rebateu: 47! Mas em seguida melou: Oh, desculpe, 38...

Frustrados, voltamos à roda de samba de onde havíamos saído. O sambão fervia quando, inesperadamente, chegou François em trajes juninos – calça e camisa de mangas compridas, quadriculada- e pegou logo o agogô.

Ele estava se achando o máximo, até que chegou um menino e o abordou: Passa isso pra cá, barbudo, você num tá com nada ! Enfurecido, François desapareceu no turbilhão da alegria. Perdemos um folião em construção.

A de ‘Coquinho’ também é muito boa. Estávamos na Avenida 7 de Setembro, nas proximidades do Relógio de São Pedro, mais precisamente na Barraca Minha Vidinha – o nome não poderia ser mais sugestivo - quando chega Coquinho, mulata bonita, toda sestrosa e portando a tiracolo um coco ornamentado, contendo cachaça envelhecida.

Sorridente, apresentou-se ao grupo e sem delongas logo ofereceu seu precioso líquido para ‘uma prova’. Décio, que fora o escolhido para iniciar a degustação, lambendo os lábios, conclamou: Nota dez! Em seguida, todos provaram daquela especiaria momesca uma, duas, três vezes. Quando a mesma chegou de volta à dona, esta a balançou junto ao ouvido e constatou que não tinha nem mais o azul, e, com cara de choro, exclamou: Ah! Meu coquinho...

Num calor infernal daqueles, nos surge a providência de provarmos uma cachacinha fria e adocicada com água de coco, era de se esperar o quê?

Nos anos seguintes, quando a avistávamos, alguém do grupo anunciava: Lá vem Coquinho. Uma vez Coquinho, sempre Coquinho.

Certa feita eu e Décio fomos comer uma feijoada em São Gonçalo do Amarante, mas primeiro passamos na Cerâmica Uruaçu para assistir a mais um capítulo da interminável pendenga da maromba, invenção de Décio parodiada por Tota.

Constatamos que estava tudo do mesmo jeito, digo, sem jeito. Aproveitando o ensejo para contar vantagem, disse-me ele com ar de quem quer ir à forra: - Vamos ao curral ver o gado.

Lá chegando, todo orgulhoso, foi logo me apresentando xangô, um touro de raça indiana, negro reluzente e de porte consistente. O que para mim era só o começo, na realidade era o fim, pois xangô representava todo o plantel bovino do amigo.

Retomando a viagem em direção à casa onde seria servida a feijoada, nos deparamos com um terreno totalmente encharcado, era uma lama só.

Ficamos no impasse, como vencer tamanho obstáculo? O carro de Gracinha, novinho em folha, iria ser sacrificado? Decidido, Décio não contou conversa, meteu o carro no lamaçal e, num suave murmúrio: - Vai ser lavado amanhã mesmo.

Desportista, no sentido literal e em todos os sentidos, Décio era um braço da Torcida Desorganizada do América (TDA).

Num dia de clássico ABC e América ele chegou à casa de Renato Magalhães, portando uma garrafa de Old Par. Depois de umas e outras e comentários sobre o clássico, montamos um mirabolante plano contra o ABC, que só não foi levado a cabo por ser demasiado audacioso.

A última vez que o vi foi no Azulão, dia 2 de agosto, dia do meu aniversário. Estávamos eu, ele e Baíto, que depois foi rendido por Paulinho Catita. Ele estava feliz da vida, dando boas gargalhadas de umas histórias contadas por um amigo dele que recém chegara de Caicó.

Pois é, meus caros amigos, Décio pertence a uma estirpe daqueles que nos fazem falta, com a qual teremos que nos acostumar.

De seu bom gosto musical relembraremos sempre os seus cantares de versos vibrantes, que não eram lamentos de senzala, mas sim, de quilombo, porque libertários:

Valeu Zumbi

O grito forte dos Palmares

Que correu terras sol e mares...


Perdi um amigo, primo e fã.


Brasília/DF, 04 de novembro de 2011.

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